Coletivo LSD, com reportagem de Letícia Vieira
Foto: Danilo Alvesd, Unsplash
Não há como discordar: a tecnologia foi o que tornou possível o ano de 2020. Do trabalho à saudade, foi ela quem deu um jeito de nos fazer avançar. E, em se tratando de bancas de advocacia, a maioria encarou pela primeira vez as grandes ondas da cultura digital.
No entanto, aqui no Brasil, escritórios digitais já existiam muito antes da realidade imposta. De modo amplo, quando se trata da adoção de novas tecnologias, nosso país tem fama de early adopter. Agora, quando voltamos nosso olhar à advocacia e ao universo jurídico, a digitalização acabou encontrando mais resistência nas bancas do Direito do que no próprio Judiciário.
Querendo ou não, a favor ou contra, o ano de 2020 tornou a experiência do trabalho remoto obrigatória para advogados de todo o mundo. Mesmo assim, posicionar-se permanentemente como um escritório 100% online ainda é um tabu.
Neste artigo, reunimos diferentes experiências e percepções sobre escritórios digitais em diferentes etapas: quem já operava de forma totalmente remota antes da pandemia, quem tinha um modelo híbrido e estava preparado para operar de forma digital e quem precisou se reestruturar rapidamente e experimentar uma dinâmica nova.
O conteúdo a seguir é um retrato do ano que vivemos, com as dores, as descobertas desse período desafiador e um vislumbre de como será o amanhã.
QUANDO SER DIGITAL ERA UMA ESCOLHA
O impacto da pandemia parece ter provocado mudanças permanentes no modo de trabalho dos escritórios de advocacia. Uma pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) mostra que 30% deles devem manter o home office em suas jornadas de trabalho depois que o vírus for combatido.
Se muitos estão apenas começando a notar os benefícios do home office, outros já estavam mais que habituados. Fabíola Simoni Guerra, gestora do departamento administrativo e financeiro do Montanha, Alcântara & Advogados Associados, é uma dessas figuras.
Seu escritório, fundado em Curitiba, não possui sede física. A digitalização teve início ainda em 2018 e, para ocasiões esporádicas, a equipe conta com um espaço reduzido, uma sala de reuniões. O fato de terem adotado o formato remoto bem antes dos desafios deste ano histórico, permitiu a Fabíola o privilégio de uma adaptação menos conturbada diante das limitações que surgiram.
“Se os clientes são de diferentes localidades, qual a necessidade de ter um escritório físico tão grande? Tanto para nós, quanto para eles, houve uma boa redução de custos”, conta a administradora.
Além do ganho financeiro, também relatam o aumento na qualidade de vida dos colaboradores. Os advogados que, por vezes, ficavam presos ao ambiente do escritório por muito tempo, trabalhando para além do expediente ou nos finais de semana, passaram a atuar em modo home office. Mas isso só foi possível com investimento em melhores tecnologias e ferramentas de telefonia e internet, que também permitiram a manutenção na qualidade dos serviços oferecidos.
A gestora financeira, Fabíola, ainda lembra que consolidar a operação à distância além de demandar investimentos, trouxe grandes desafios. Por isso, ter objetivos claros e um bom planejamento foram pontos fundamentais para a concretização do novo formato com eficiência e equilíbrio.
O Lima Feigelson Advogados assumiu seu formato totalmente digital em meio à pandemia, no entanto, encarar a mudança em tempo recorde foi um pouco mais tranquilo para eles. Isso porque há algum tempo a equipe da banca já tinha à disposição o respaldo necessário para atuar de forma remota, mesmo antes da necessidade de distanciamento social. Isso, segundo feedback dos próprios colaboradores, tornou a adaptação muito positiva.
Como nem tudo são flores, Andreu Wilson, um dos sócios da banca, aponta que um escritório virtual pode não ser a melhor alternativa para todos. Afinal, na advocacia sabemos que o “one size fits all” não existe. Quando o tema é operação remota, não é diferente.
Ter uma equipe sólida é importante, manter uma relação próxima com os clientes, mais ainda! Antes de uma mudança desse tipo, é fundamental que os clientes sintam-se seguros quanto a qualidade das entregas e também sobre a continuidade dos serviços, em especial na fase de transição do presencial para o remoto.
Comunicação: muito longe do país das maravilhas
Independente da capacidade de adaptação da equipe, há casos em que nem sempre as coisas fluem tão bem. Funções que demandam várias etapas de revisão e feedback são exemplos em que não ter um gestor ao alcance da voz pode fazer muita falta.
Além disso, a pluralidade de meios de comunicação oscila entre uma aliada e um obstáculo. E-mails, plataformas de gestão, telefonemas, videoconferências, WhastApp…há de se fazer valer Paracelso: “a diferença entre o remédio e o veneno é a dose”.
Se para atividades que envolvem feedback e diferentes instâncias de aprovação a comunicação por mensagem de texto pode atrapalhar, para outras, ela se tornou uma maneira de agilizar. Ferramentas como o WhatsApp ganharam ainda mais presença no dia a dia de advogados, e se tornaram um elo entre diferentes áreas dos escritórios.
Segundo Bárbara Gondim da Rocha, Head de Gestão do Conhecimento e Inovação do escritório Rocha, Marinho E Sales Advogados, uma pesquisa feita com os colaboradores no início da adoção temporária do home office constatou que mais de 80% da equipe estava gostando do novo modelo de trabalho. O escritório, porém, ainda não deliberou se irá continuar com o formato 100% remoto no pós-pandemia.
Escritórios de Advocacia e Netflix, o que têm em comum?
Uma das preocupações dos gestores que adotaram o home office permanente está na manutenção do convívio e da cultura. Reed Hastings, CEO da Netflix, afirmou em entrevista ao The Wall Street Journal que, se pudesse, retomaria as atividades presenciais ‘doze horas após a aprovação de uma vacina’. A justificativa está na dificuldade de manutenção de uma atitude corporativa arrojada, que estimula a equipe a se comunicar com franqueza e a assumir riscos.
Afinal, é da interação física que sentimos falta? Ou seria possível estreitar laços também pela tela do computador?
O Rocha, Marinho E Sales Advogados, com uma de suas sedes em Fortaleza, tem pensado sobre isso desde que passou a trabalhar exclusivamente de forma remota por conta da pandemia de Covid-19. Para dar conta do lado humano nessa transição para o digital, a advogada Bárbara conta que a banca tem organizado conversas entre as equipes com o intuito de trabalhar a saúde mental e alinhar expectativas, já que para ela a grande questão está nas pessoas, assim como nos processos.
Essa é uma alternativa que ganhou muita força nesse período de isolamento e, muito provavelmente, você se identifica com ela. Passamos a comemorar aniversário, fazer happy hour e até as baladas deram um jeito de acontecerem pelas telas do computador e do celular. Com as relações profissionais, não foi diferente.
Quem também compartilhou sua experiência com relacionamentos interpessoais no mundo virtual foi a gestora de controladoria jurídica Josikelle Santos, que já trabalha remotamente há dois anos. Ela relembra como, muito antes da pandemia, o escritório Montanha, Alcântara já adotava práticas online de estímulo à interação social. Toda semana, promoviam encontros virtuais para projetos de aperfeiçoamento e troca de ideias.
QUEM ENGAJA E IMPULSIONA
O papel da liderança em um cenário de trabalho virtual é ainda mais complexo. Como trabalhar o engajamento à distância? E, mais difícil ainda, como engajar um time em meio à ansiedade e angústias de uma pandemia? É preciso manter uma comunicação constante com toda a equipe, apostar ainda mais na transparência e procurar ter sempre um alinhamento com os gestores das demais áreas.
Um cuidado maior também é exigido em relação às expectativas. Mostrar para a equipe que quem está em uma posição de liderança também enfrenta desafios é fundamental para evitar uma autocobrança por metas irreais, especialmente em momentos conturbados.
TALENTOS EM TODOS OS CANTOS
Na área de talentos, a operação 100% digital também traz vantagens, pois viabiliza a contratação de profissionais de qualquer lugar do mundo. É o caso da gestora de controladoria jurídica Josikelle de Souza Santos, que estava no exterior quando passou a integrar a equipe do escritório curitibano Montanha, Alcântara e, hoje, mora na Bahia.
Maine Bubach, advogada sênior, passou a integrar o time do Lima Feigelson Advogados em agosto deste ano, após o fechamento da sede no centro do Rio de Janeiro e a transição permanente do escritório para o trabalho remoto. Moradora do Espírito Santo, a advogada começou sua carreira estagiando no Ministério Público, onde o status dos processos era a única informação que conseguia acessar digitalmente.
Hoje, a advogada vê uma melhora em sua qualidade de vida: seus dias de trabalho começam com um bom café da manhã, sua série matinal de exercícios e — um detalhe importante — nenhuma buzina de carro. Esse, sem dúvidas, é um dos pontos mais positivos da experiência digital para quem mora nos grandes centros.
AMANHÃ VAI SER OUTRO DIA
“Os primeiros 60 anos da tecnologia jurídica foram voltados à automação, não à transformação — usando a tecnologia para simplificar e aperfeiçoar a forma com a qual você já trabalha. Isso não significa mudar, significa incorporar tecnologia a uma prática jurídica tradicional.” Esta foi uma das declarações de Richard Susskind, professor da Universidade de Oxford, para o Financial Times em setembro deste ano.
Se a primeira e a segunda ondas de disrupção do Direito não foram suficientes para remodelar a atuação dos advogados, a terceira deve ser capaz de dar este passo.
Entre as novas formas de atuar no direito, os papéis intermediários têm ganhado destaque. Funções que circundam a prática da advocacia como legal operations, training e gestão do conhecimento vêm crescendo cada dia mais. Em países europeus e nos Estados Unidos essas profissões já estão bem mais desenvolvidas, e somente agora começam a ganhar fôlego por aqui.
Por outro lado, força de iniciativa não parece ser um problema para nós. Afinal, o mercado jurídico brasileiro vem se adequando extremamente rápido ao formato digital. Em poucos meses aprendemos a lidar com processos eletrônicos, reuniões por vídeo, audiências virtuais… É difícil saber quando será a grande virada tecnológica do Direito brasileiro, mas poder de adaptação e coragem para mudar, já temos de sobra.
O Studio LSD agradece a todos os profissionais que, gentilmente, colaboraram para a construção deste especial de 2020, ano que reinventou o próprio sentido de estar vivo para muitos de nós. Desejamos a você, leitor, um 2021 de muita saúde, não só para abraçarmos novos sonhos, mas também uns aos outros!